Nesta semana, mais precisamente dia 23 de abril, a Lei da Pureza Alemã, ou Reinheitsgebot completa 505 anos.
Sendo a lei relacionada à segurança alimentar mais antiga ainda com força nos dias de hoje, ela tem muita influência no mercado de cervejas, seja na determinação dos ingredientes, seja na comunicação dessa tradição.
Muito se sabe sobre a promulgação da Lei e como ela foi importante para moldar o modo de fazer cervejas na Alemanha, mas pouco se fala de algumas motivações para sua criação.
Antes da popularização do uso do lúpulo na cerveja, o ‘gruit’ era utilizado para “temperar” a cerveja. O gruit é uma mistura de ingredientes e ervas que auxiliavam na conservação da cerveja e traziam aroma e sabor.
Algumas das ervas utilizadas eram murta-do-brejo, alecrim do campo, urze, zimbro, myrica gale, gengibre, cominho, canela, milefólio, entre outros.
Um ponto interessante é que o uso de algumas ervas podia trazer propriedades tóxicas, narcóticas, psicotrópicas e afrodisíacas, isso em altas quantidades de consumo. Mesmo tendo referências desse fenômeno, a Igreja Católica não proibia a utilização.
A Igreja Católica obtinha o monopólio sobre os impostos e venda do gruit, ela quem determinava o que se podia ou não colocar na mistura.
A partir destes fatos, alguns autores arriscam dizer que a Reforma Protestante ganhou força em detrimento do gruit, visto que a publicação da Lei da Pureza coincide justamente com os primeiros atos públicos de Martinho Lutero.
Isso porque, acredita-se que a irritação de membros protestantes em relação aos efeitos narcóticos e sexuais do gruit tenha sido o start para a inserção do lúpulo como único “tempero” na cerveja, além de estimular a competição de mercado e diminuir os lucros da Igreja.
O lúpulo, a planta trepadeira que é parente da cannabis, já era comumente utilizado em algumas receitas de gruit, e seu efeito é um pouco diferente dele. Com propriedades relaxantes, o lúpulo tranquiliza o bebedor de cerveja e não desperta o comportamento sexual como no outro caso. Além disso, tem alta taxa de conservação, trazendo mais vida útil para a cerveja.
As receitas de gruit, eram praticamente exclusivas de cada cidade ou região, controlada pelos bispos que recolhiam os impostos. As taxas sobre o uso do gruit eram calculadas de acordo com a quantidade de cerveja produzida a partir da quantidade de malte, e os valores chegavam a ser 8 vezes maiores do que as taxas sobre o lúpulo.
Com a utilização do lúpulo crescendo, alguns lugares como a Grã-Bretanha passaram a diferenciar as cervejas feitas com gruit, chamadas de ales, das feitas com lúpulo, chamadas de beer.
Com esse crescimento, algumas cervejarias passaram a enviar cerveja de um país para outro, aumentando ainda mais o gosto pelas cervejas lupuladas. Assim, os governantes de alguns países passaram a ordenar que os fazendeiros destinassem parte da terra para produção de lúpulo.
Em alguns lugares como a Inglaterra, o uso de lúpulo teve uma certa resistência até pelo menos o fim do século XV. John Taylor, um escritor britânico disse: “Cerveja é um licor alemão grosseiro, uma coisa não conhecida na Inglaterra, até recentemente, um estranho à nossa nação, nesses tempos que até lúpulos e heresias chegaram até nós, é um intruso atrevido nesta terra.”
A chegada das cervejas lupuladas estava completamente associada aos alemães, que vendiam suas cervejas e a ideia de utilizar lúpulos nas cervejarias. Por muitas vezes, este fenômeno foi relacionado a episódios de xenofobia.
Podemos ver que o uso de lúpulo demorou a conquistar o grande público e levou anos para se consolidar, mesmo sendo descrito no século XI por Hildegard Von Bingen, sendo a primeira pesquisa a mostrar as propriedades relaxantes e conservantes da planta.
A partir desses acontecimentos, podemos inferir que a Lei da Pureza Alemã, teve muitas influências religiosas e políticas, pois além de fazer parte de um movimento que mais tarde se desenvolveu para a Reforma Protestante, ela se relaciona também com a disponibilidade de insumos.
Há relatos de que a Reinheitsgebot tenha sido motivada também pela limitação de recursos, proibindo a produção de cerveja de trigo, para que o trigo fosse destinado exclusivamente para a produção de pão. Aqui entra uma outra questão de lobby político, em que o direito de produzir cervejas de trigo era concedido a alguns cervejeiros, pelo duque. Acabou virando uma questão de exclusividade e status.
Agora pensem comigo: a Alemanha, sendo o berço das cervejas de trigo, proibida de fazer cervejas de trigo. Por isso que sempre digo para pensarmos na Lei da Pureza como um ato mais político do que uma tentativa de garantir a qualidade da cerveja.
Na Alemanha, a produção de cerveja com adjuntos não inclusos na Lei da Pureza ainda é muito estigmatizada. Para ser chamada de cerveja, é preciso seguir essas regras e ponto!
Ah, e Lei da Pureza, por mais antiga que seja, só recebeu o nome Reinheitsgebot em 04 de março de 1918, antes disso, a lei se chamava Surrogatverbot que significa proibição de adjuntos ou produtos substitutos.
Hoje vemos que o que determina a qualidade da cerveja é a qualidade dos insumos (sejam eles quais forem), a qualidade da produção e a receita em si. O sucesso da cerveja está muito ligado com o cervejeiro também, e sua habilidade de repetir esse sucesso. (Quem faz cerveja sabe, rs.)
Muito utilizada em campanhas de marketing, a Lei da Pureza trouxe algumas manias e vícios para quem está entrando no mercado de cerveja, ou iniciando o consumo de cervejas especiais. Passando a ideia de que somente cerveja puro malte, tem qualidade.
Eu sempre digo que puro malte não é atestado de qualidade e que se deve levar outras coisas em conta, antes de julgar a cerveja. Com tanta riqueza de ingredientes que cada local pode ter, o excesso de conservadorismo e protecionismo pode afetar a qualidade da cerveja e da experiência de beber.
Eu costumo falar que a Lei da Pureza tem muito mais ligação com o que é cerveja na Alemanha do que no resto do mundo. Temos que considerar, que cada região tem uma especificidade de acesso a recursos e insumos. Como por exemplo, o próprio uso de lúpulo no Brasil, até pouco tempo, cultivar a planta por aqui não era realidade, tanto pela cultura, quanto pelo clima.
Hoje a tecnologia nos permite estudar alternativas e criar lúpulos brasileiros. Nós precisamos respeitar a nossa história e a do outro. O uso de adjuntos como o milho em alguns lugares, teve motivações econômicas e mantém uma relação direta com a disponibilidade da terra. Outra coisa que sempre digo é: cada um faz cerveja com o que tem!
É real, a Alemanha tinha uma realidade, a Inglaterra tinha outra e não possuía a mesma ligação com a utilização do lúpulo como na Alemanha, por isso a resistência.
Apesar de tudo, o lúpulo demorou, mas conquistou o coração e o copo de todos, ganhou popularidade e se mostra até hoje como um aliado à conservação da cerveja, além de trazer aromas e sabores incríveis e aquela amargor característico que a gente adora.
Um brinde aos 505 anos da Lei da Pureza!
Fontes:
Hieronymus, Stan. For the love of hops : the practical guide to aroma, bitterness, and the culture of hops / by Stan Hieronymus. Colorado, Brewers Publication, 2012.
Oliver, Garret. O Guia Oxford da Cerveja. Editor brasileiro. Iron Mendes. Tradução Waldemar Gastoni Venturini Filho. São Paulo: Blücher, 2020.
Morado, Ronaldo. Larousse da cerveja. São Paulo: Alaúde Editorial, 2017.
Beltramelli, Maurício. Cervejas, brejas e birras. Leya, 2012.
https://private-brauereien.de/de/reinheitsgebot/was-ist-das-reinheitsgebot-von-1516/index.php